Quinta-feira, 00:23. Os comboios partem, já os últimos, carregados de gente cansada e desejosa de chegar a casa, para consolar o estomâgo numa sopa quente e aquecer as mãos à lareira com a família. Lá fora é quase neve, nem sei se o fumo que sai da minha boca é do tabaco ou do ar frio, mas entretenho-me a brincar com ele quando, de súbito, me apareces como uma sombra do lado direito. De nariz frio, expressões fechadas, olhos vermelhos e baços, com o casaco até ao queixo. Pedes-me um cigarro com maus modos e depois deitas-te no banco, com a cabeça no meu colo, como se eu fosse tua mãe e tivesse a obrigação de ouvir tudo da tua boca sem ralhar contigo.
Sem uma palavra fecho-te os olhos e passo-te a ponta dos dedos suavemente pelas pálpebras, como tu gostas, e instantaneamente adormeces. Fico ali, a ver-te dormir, nessa calma muda de quem se consola com pouco. O ar frio a sair-te do nariz, a enrolar-se, a subir... para depois se desvancer à frente dos meus olhos, misturado com o meu.
Fumo mais um cigarro ou dois, parte mais um comboio ou dois: Campanhã, São Bento... Ficamos ali imóveis; tu deitado em cima das minhas pernas, como um menino mimado mas com a barba por fazer e eu à espera da hora e do comboio certo, situada algures no entretanto de uma chegada e uma partida, com medo de te acordar porque podes ficar de mau humor. Passo-te outra vez os dedos pelos olhos e desço até ao pescoço, tapado pelo casaco. Tenho vontade de te tocar na pele nua, tenho saudades tuas. Já não és o mesmo desde que nos separamos pela primeira vez - nasceu um monstro frio e calculista dentro de ti, amante da vaidade e da bajulação; uma frontalidade sádica, uma revolta interna de sentimentos que não queres sentir.
Tu amas-me. E para mim basta a ternura que me invande quando adormeces subitamente ao toque das minhas mãos, as palavras estão gastas e fartas e eu já não acredito nelas. Se soubesses aquilo que transmides enquanto dormes nunca mais fechavas os olhos, nem que fosse só para descansar a vista, com medo de desarmar e de cair, que vejam que também és fraco e tens medo.
Quando tinha que me despedir de ti e ir para a minha casa, levava comigo o último beijo, carregava-o nas mãos pelas escadas acima, e deitava-me com a tranquilidade que ele me dava. Agora já não temos que fazer isso, deixamos perder a magia da despedida; já nem há beijos de bom dia, já não há nada. Porque hoje somos dois desgraçados, que dormem à vez numa estação qualquer, com medo que lhe roubem a roupa que têm no corpo, porque afinal é só mesmo isso que nos resta. O que somos um para o outro temos cravado no coração e isso, nem os bichos que nos hão-de comer um dia quando morrermos, vão destruir. Permanecemos inertes numa estação qualquer, à vez também, e apanhámos a mania que há uma hora certa e um local certo para ir. Sente-se, não está escrito no horário digital pregado à parede, nem se consegue decifrar na bandeirola do chefe de estação. Chegou um agora, vai para a cidade invicta. Tenho a sensação que está na altura, mas acho que tu não concordas: continuas imóvel ao meu colo, não tenho coragem de me mexer. Deixa, apanhamos outro - há mais horas certas, e comboios.
3 comentários:
Belo texto, miúda!
Obrigada por regressar!
Fico à espera e acredito.
Beijinho
lindissimo
Gostei! Mt bem elaborado :P
Fico contente por teres "regressado" em grande.
Beijinhos :D ****
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