2 de julho de 2013

Cronicidade

Conheço-te o corpo. Conheço-te a alma, o olhar, o desalento, as mãos, a dor. Conheço-te o rancor, o ressentimento, as palavras desditas e as amarguras da vida, esse ciúme descontrolado. Conheci-te pela primeira e última vez numa noite quente de Agosto, e foi tudo o que bastou no caos do nosso amor para que eternizássemos essa íntima informação e a selássemos com um beijo que durou toda a eternidade daquilo que nos pertenceu.
Começamos a morrer por dentro nessa noite, testemunhados por uma escadaria empoeirada que nunca nos abandonou, mesmo na impotência de tantos abraços e beijos que nela fomos dando ao longo de muitos anos. Abandonamo-la aos seus desígnios numa noite contrariamente fria e vazia. Fizemos juras de nunca nos deixarmos, mas eram apenas frágeis palavras de miúdos embevecidos no talento de amar que descobrimos juntos.
Depois de tantos anos a olharmo-nos de soslaio por entre as brechas que a multidão vai permitindo descobrir, ordeno-te que não caias na hipocrisia de me vir dizer que agora a amas a ela. É mentira. Tu sabes tal e qual como eu que é mentira. Que as unhas que cravaram um dia o teu corpo ainda te fazem sangrar os poros, que os beijos se impregnaram na pele um do outro, que o estrondo que os nossos corpos faziam perdidos de paixão contra cómodas e paredes deixou marcas profundas e irremediáveis que nunca apagarás, por muito que empurres contra elas esse pseudo-amor perfeitamente falível que depositas nessa mulher, que não te conhece as entranhas como eu. Tu sabes que jamais terás alguém que te ampare as quedas como eu, que se sente no chão e chore contigo, que se humilhe no perdão de histórias que esse ciúme desmesurado inventava contra mim. Só eu, espantada, poderei render-me a carinhos inesperados para logo a seguir ser mandada embora pelas dúvidas que te assaltam, de súbito, sem um argumento que convença o teu coração que me amas mais que a própria vida e que não saberás depositar em mais ninguém o ardor e a paixão com que vives aquilo que te vai sendo atirado pelo destino. Apenas eu sei de ti e dos teus pesares sem queixas nem julgamentos, aturdida pela sinceridade com que me amas e desamas. Sou a única que consentirá essa dúvida permanente, convencida que no teu ínfímo me amas e que apenas reages assim porque tens medo.
Lembro-me bem de como começavam esses enredos dramáticos em que dizias que já não me amavas mais e que nunca mais me querias ver: começavam com uma recusa em estares comigo e acabavam numa acusação mentirosa que magicavas na cabeça e que anulava tudo aquilo que tínhamos para dar um ao outro. Eu ia-me embora com o coração na boca, mesmo certa que isso não era mais que um capricho teu, que o teu ego inflamava porque me amavas demais e o teu orgulho não o consentia, que a medida do amor na tua mente era feita de limites e que receavas perder a sanidade por uma mulher como eu. Afastavamo-nos durante uma noite ou duas, mas sempre com o olhar cravado um no outro, como se fosse esse olhar que garantisse que a mútua perdição maluca ainda não se tinha dissipado - era esse o sinal de uma reconciliação breve e calada, porque sempre fomos muito bons a conversar no silêncio. Pedias-me perdão com a mão sobre a minha, apenas, e abraçavas-me forte, contra o coração antes de me amares pela noite dentro. Faziamo-nos um só quando nos amávamos assim, depois de uma discussão inventada. Sempre no silêncio dos nossos espasmos, no silêncio de dois corpos a roçar, de mãos dadas, braços presos, movimentos torpes, boca seca. Depois éramos o homem e a mulher da vida um do outro, como se nada tivesse acontecido, até que uma nova dúvida te sobressaltasse a coragem.
Eternizamos tudo quanto fizemos e dissemos, mesmo que agora não o assumas - porque tu nunca assumes, já te disse muitas vezes. Da mesma forma que tens medo que esse amor que me tens te consuma, também o evitas fisicamente, como se não soubesses que a dor lacerante da paixão é muito mais insuportável que o orgulho ferido. Não te perdoarei, finalmente, essa cobardia de que padeces há anos, abanando a bandeira da impunidade, como se depois de tanta luta contra ti mesmo, a culpada do fracasso a que te permitiste fosse minha.
Sabes, apetece-me acusar-te durante muito mais linhas, porque a lista das tuas fraquezas é infinita, mas esta é também uma fraqueza minha: não consigo parar de pensar em ti. Numa fraca tentativa de me desprender de ti por uns instantes, abandonarei, desta vez eu, o peso do amor que sinto por ti e que estou farta de vergar às tuas vontades. Fica com ela. Fica com essa mulher, mesmo sabendo que nunca deixarás de amar outra.


Miradouro de Santa Lúzia, Lisboa 2013

2 comentários:

Ana Tapadas disse...

Olha tão linda a minha Sarita...e que belo texto!
Saudades.
bjs

Ana Tapadas disse...

Então garota, já está de férias?

bjs