"Através do amarelo antigo e da sua psicológica tradução em tempo – um
sentimento, uma noção doce e alarmante – a Velha Avó, nas circunstâncias um
corpo jovem subtilmente inclinado para a frente, atento à própria força, a
Velha Avó jovem sai das esquadrias que a delimitaram, e irrompe para além desse
Verão exaltado. Bate-me em cheio. Bate em mim, junto à cama, em mim que assisto
a um tempo bem actual, à fluente e temível demonstração do corpo que continuou
o movimento. Para diante, para diante. Rompendo as ficções do estatismo, o mito
incomportável das fotografias.
– Avó...
Ela está na cama de madeira escura, uma avó que enche um minúsculo volume
de colcha branca lavrada; e do pescoço para cima, uma avó cor de limão, cor de
azeitona. Uma avó de dois braços pela colcha branca abaixo, e as mãos saindo
das mangas claras e amarrotadas do casaco de lã. Mãos cor de azeitona, duras,
imóveis. Vamos: podres. Duas mãos podres. E tudo isto – que é o pouco do
presente, com um significado de súbito espantoso na minha própria carne – está
no meio da penumbra do quarto, enquanto lá fora o mês quente se desenvolve,
atormentado por uma excessiva firmeza vital, mês feroz, com a sua atmosfera de
violência luminosa. É fascinante para mim poder dar alguns passos entre a fotografia
(sobre a cómoda) e a enorme cama negra – eu que compreendo alguma coisa (e com
que abalo!), procurando sorrir quando a Velha Avó ergue as pálpebras e me fixa
não sei entre que hesitações de torpor e vigilância. Sorriso sem experiência, o
meu. Porque não sei como está aqui essa fotografia e este corpo. E não sei do
mesmo modo quase nada acerca do corpo das pessoas, o seu tempo, os tempos, a
verdade. E depois, como se o sorriso com a sua inépcia não fosse bastante sinal
da minha confusão, eu digo numa voz ainda mais inexperiente:
– Avó... (...)
A Avó abre os olhos, e eu vejo uma nova luz áspera e gelada: a
inteligência, uma energia que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o
retrato para o centro do tempo, tornando-o movimentado e audaz, completo. Nesse
olhar progride agudamente um sorriso que o limpa da velhice e deixa o sal de
uma fina malícia. Os lábios mexem-se, parecem brilhar um instante. O corpo
renasce do próprio esgotamento. A Avó diz:
– É tudo mentira...
Depois as pálpebras descem e o corpo é absorvido pelo enigma. As paredes
alteiam-se, o retrato recua, a minha juventude fica sem armas – fulgurante e
estúpida.
Assim é porventura a sabedoria: vil, esmagadora. O único tempo que lhe
pertence deve ser a idade mas quando dela se aproxima um jovem fascinado que a
si mesmo impôs a condição de mensageiro, como se quisesse tocar no gelo,
convencido – ele! – de que o calor dos poucos anos poderá fundir o gelo, então
o gelo agarra a idiota mão quente, e queima-a.
A Avó morreu nesse mesmo dia."
Herberto Hélder
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Herberto Hélder |
6 comentários:
Também já tive a minha fase «Herberto Hélder»...e ainda gosto muito.
Grande beijinho
Oh, jornalista, eu quero aqui um post novo...
Beijinho
Então...vou usando este post!
Enquanto se faz adulta/citadina e racional...abraço!
Eu vou encher de comentários este post...até ter aqui um novo!
Beijinho e espero que tudo esteja a correr bem.
Excelente evocação. obrigado.
Ora cá estou...beijocas!
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