8 de janeiro de 2012

Pedem tanto a quem ama: pedem o amor

"Através do amarelo antigo e da sua psicológica tradução em tempo – um sentimento, uma noção doce e alarmante – a Velha Avó, nas circunstâncias um corpo jovem subtilmente inclinado para a frente, atento à própria força, a Velha Avó jovem sai das esquadrias que a delimitaram, e irrompe para além desse Verão exaltado. Bate-me em cheio. Bate em mim, junto à cama, em mim que assisto a um tempo bem actual, à fluente e temível demonstração do corpo que continuou o movimento. Para diante, para diante. Rompendo as ficções do estatismo, o mito incomportável das fotografias.
– Avó...
Ela está na cama de madeira escura, uma avó que enche um minúsculo volume de colcha branca lavrada; e do pescoço para cima, uma avó cor de limão, cor de azeitona. Uma avó de dois braços pela colcha branca abaixo, e as mãos saindo das mangas claras e amarrotadas do casaco de lã. Mãos cor de azeitona, duras, imóveis. Vamos: podres. Duas mãos podres. E tudo isto – que é o pouco do presente, com um significado de súbito espantoso na minha própria carne – está no meio da penumbra do quarto, enquanto lá fora o mês quente se desenvolve, atormentado por uma excessiva firmeza vital, mês feroz, com a sua atmosfera de violência luminosa. É fascinante para mim poder dar alguns passos entre a fotografia (sobre a cómoda) e a enorme cama negra – eu que compreendo alguma coisa (e com que abalo!), procurando sorrir quando a Velha Avó ergue as pálpebras e me fixa não sei entre que hesitações de torpor e vigilância. Sorriso sem experiência, o meu. Porque não sei como está aqui essa fotografia e este corpo. E não sei do mesmo modo quase nada acerca do corpo das pessoas, o seu tempo, os tempos, a verdade. E depois, como se o sorriso com a sua inépcia não fosse bastante sinal da minha confusão, eu digo numa voz ainda mais inexperiente:
– Avó... (...)
A Avó abre os olhos, e eu vejo uma nova luz áspera e gelada: a inteligência, uma energia que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o retrato para o centro do tempo, tornando-o movimentado e audaz, completo. Nesse olhar progride agudamente um sorriso que o limpa da velhice e deixa o sal de uma fina malícia. Os lábios mexem-se, parecem brilhar um instante. O corpo renasce do próprio esgotamento. A Avó diz:
– É tudo mentira...
Depois as pálpebras descem e o corpo é absorvido pelo enigma. As paredes alteiam-se, o retrato recua, a minha juventude fica sem armas – fulgurante e estúpida.
Assim é porventura a sabedoria: vil, esmagadora. O único tempo que lhe pertence deve ser a idade mas quando dela se aproxima um jovem fascinado que a si mesmo impôs a condição de mensageiro, como se quisesse tocar no gelo, convencido – ele! – de que o calor dos poucos anos poderá fundir o gelo, então o gelo agarra a idiota mão quente, e queima-a.
A Avó morreu nesse mesmo dia."

Herberto Hélder


Herberto Hélder

6 comentários:

Ana Tapadas disse...

Também já tive a minha fase «Herberto Hélder»...e ainda gosto muito.

Grande beijinho

Ana Tapadas disse...

Oh, jornalista, eu quero aqui um post novo...


Beijinho

Ana Tapadas disse...

Então...vou usando este post!

Enquanto se faz adulta/citadina e racional...abraço!

Ana Tapadas disse...

Eu vou encher de comentários este post...até ter aqui um novo!

Beijinho e espero que tudo esteja a correr bem.

P disse...

Excelente evocação. obrigado.

Ana Tapadas disse...

Ora cá estou...beijocas!