Andamos num bailado frenético pela casa enquanto disfarçamos, por meio de tarefas banais, o desejo que se nos impõe e nos atira, silenciosamente, um para o outro. Eu acabo calmamente um trabalho importantíssimo, como to apresentei, enquanto fumo um cigarro ou dois que passa mais tempo a arder no cinzeiro ao meu lado que na minha boca a matar-me nessa indolente lentidão que já tão bem lhe conhecemos - afasto-me assim de pensamentos promiscuos, constantes e que me consomem ao longo das horas que me parecem eternidades.
Tu sentas-te na cama, pões essa expressão despercebida e lês manuais de instruções de coisas que já nem existem cá em casa, ou que nunca existiram. Esses manuais lembram-me do livro que apanhaste no chão, numa rua ao acaso, desta também cidade ao acaso, que tinha aquela particularidade de ser completamente inútil por as técnicas lá utilizadas já terem pó, mas que dedicaste horas sem fim a ler. E aprecio, quase invejo, essa tua complacência e especial atenção a matérias tão infrutíferas e ultrapassadas, carregando de serenidade e consentimento o rosto fechado que raramente largas.
Entretanto eu já olhei inúmeras vezes para ti, numa descrição parva e esquizofrénica, quando já devia saber que poderia ter passado todo o tempo que dedicaste ao manual a fitar-te porque tu não me vês, de qualquer forma. Durante todo esse processo de aprendizagem que passo ao olhar-te as expressões para tas conhecer, vou tentado também decifrar-te os pensamentos que, imagino eu, te escorrem como água num desfiladeiro. Há então outra coisa de que tenho certeza mesmo sem a ter: enquanto lês atentamente essa tralha compactada não pensas em mim, não me sentes, nem a ti, não me amas sequer. Numa tentação que me é própria, do romântico, do rebuscado, arrisco que, ao contrário daquilo que eu apreendo assim à primeira vista, tu apenas me seduzes e provocas, prolongando este ardor interno para depois alucinarmos os dois, um no outro. Enfurece-me a hipótese de seres só aquilo que vejo e por isso, numa tentativa de não me desiludir com a simplicidade de que padeces, imagino-te muito mais que isso... Como se todo o teu corpo físico se separasse bruscamente daquilo que te vai dentro, na alma, e além de um homem que lê manuais de instruções inúteis e livros ultrapassados que encontra a meio caminho de casa, consigo transformar-te num homem, só e apenas. No seu esplendor e toda a graça humana, que te concede uma sede animalesca de paixão e desejo, no expoente máximo do instinto natural.
Algures perto de Ponte de Sor (2011)
3 comentários:
Texto,fotografia e fundo blogue estão de «top»...
beijinho
Gostei do escrito e do fotografado.
Saudações poéticas
Un beso, Margarida. Tus fotografías son preciosas...
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