29 de janeiro de 2015

Abrimos a porta ao delírio

O linho branco suportava o suor
de dois corpos imaculados.
Os candeeiros não iluminavam nessa altura
porque toda a luz que precisávamos vinha da janela
e fundia-se com a própria luz de dois corpos abraçados
frente às portadas em noites sem lua - lá em baixo, só os postes imundos
onde se encostavam prostitutas há espera dos clientes
que procuravam o que nós tínhamos lá em cima,
sem nunca saberem que realmente era aquilo que queriam
porque não se pode querer uma coisa que nunca se experimentou;
sempre ouvi dizer que o que nunca existiu em nós não nos falta.
Perdíamos consecutivamente os sentidos
tal era a brusquidão do arquear sôfrego do nosso peito
quando o ar faltava nos pulmões, razão das convulsões que o corpo devia ao prazer.
A alcatifa povoava o chão e as paredes eram aquecidas
para que pudéssemos vaguear despidos e despojados,
nessas alturas em que só as tuas mãos não pesavam -
nem camisas, nem mantas - nada superava a leveza das tuas mãos.
Agora que te escrevo, espanto os demónios para dentro das prateleiras atafulhadas
de livros que outrora nos fizeram companhia - e os peixes vermelhos - lembras-te?
parece que estamos de novo aqui,
que os teus cabelos ainda deixam o cheiro a camomila na minha almofada,
para quanto te espantar de novo da minha vida, possa perder-me nessa imensidão
tão terrível quanto saborosa.
Por enquanto tomas banho, não purificas o corpo de merda nenhuma
eu continuo-te entranhada, mesmo quando passares a ombreira da porta que nos separa do mundo
da cidade húmida, dos ventos invernosos do Tejo.
E é a alma a querer mais, a suplicar-te que fiques;
e tu inquieto, duvidoso a ires-te cheio de remorsos,
a morrer de medo do que te bate no peito, mas assoberbado pela falsa sensação de controlo
que na verdade é o descontrolo no seu estado mais primitivo.
Foste sem querer olhar para trás, porque esse exercício traumático já te fez ceder
e tu juraste nesse dia que não sabias possível guardar amor em sítios tão recônditos do coração
que nem mesmo tu pensavas ainda existentes.
Há um âmago, um núcleo revestido, um tecido auto-regenerativo que desconheces
dentro do músculo que te faz viver e um dia morrer,
...sempre por mim.



Lisboa, Cinema S. Jorge (2014)



5 de dezembro de 2014

Sofreguidão

O meu estômago sustém fragilmente aquilo que lá dentro lhe meti apenas para me dar força suficiente para continuar a amar-te incondicionalmente. E para esperar - sobretudo para esperar. Não que olhes para trás nem para que voltes, mas para que um dia abra os olhos e tu estejas aqui inteiro, como se nunca tivesses ido [como se eu nunca te tivesse deixado ir]. E para que todos os livros com que atafulhei a minha casa sejam a cama, o sustento dos nossos corpos entregues aquilo que nunca conseguimos dissipar: paixão. Mais que o nosso amor, que esse alimenta-se solitário de um ar qualquer, a nossa paixão é agora um pedaço moribundo daquilo que já fomos e precisamos ser de novo. Reforço: não quero que voltes. Porque voltar implica trazer tudo o que nos destruiu, reviver pesadelos, assumi-los e resolvê-los. Não quero fazê-lo; não creio que consiga. Não quero perto de nós nada que nos possa arrastar em espiral para um buraco negro maior que aquele onde nos enfiámos há anos atrás. Quero só que venhas. Que estejas. Preciso de ti. O meu estômago sustém fragilmente aquilo que lá dentro lhe meti apenas para me dar força suficiente para continuar a amar-te. Quero que venhas, que fiques, que o mundo seja uma página de Herberto (dos peixes vermelhos, "do peso da camisa sobre a cadeira, 'tá a ver?!") - tu gostavas de recitar essas prosas comigo. Ríamos e chorávamos, tudo no mesmo chão compresso e frio, que íamos aquecendo no calor dos beijos. Tínhamos esse dom que não têm todos os amantes, porque o amor não é paixão e a paixão não é amor, mas nós tínhamos os dois ao mesmo tempo e às vezes um era maior que o outro, mas tudo cabia equilibradamente no Universo. Desde que foste embora a atmosfera perdeu o balanço, eu expiro mais do que respiro, sou como um peixe fora de água a tentar sobreviver, com as guelras a latejar, num espasmo infinito para me manter viva. Vou do frio ao calor em meros segundos, sofro de febres altas, tenho o peito do avesso, coração, artérias, pulmões para fora, eternamente sujeitos a infecções fatais. Esqueço-me de ser. O meu estômago sustém fragilmente aquilo que lá dentro lhe meti apenas para me dar força suficiente para continuar a amar-te incondicionalmente.


Palácio de Pombal, Bairro Alto, 2013

24 de outubro de 2014

Não me deixes ir.

Vim dizer-te em que pé é que estamos. Portas fechadas, vidros baços, chão frio, paredes brancas. Mal nos aguentamos à tona, mais coisa menos coisa afogamo-nos e tu aí nessa apatia. Tu não queres saber, ignoras as minhas chamadas de atenção exasperadas, ficas especado enquanto o abismo se abre entre nós. Esqueces a minha boca húmida a beijar recantos aleatórios da tua cara, do teu pescoço, da tua nuca. As minhas mãos dançam freneticamente na tua direcção e uma sombra negra afasta-me do teu corpo, e tu sem te mexeres um milímetro. Ficas assim, inerte, a achar que sou eu que tenho de alcançar-te e não o contrário. Vives na completa certeza de ainda me teres e isso é o suficiente para saberes que não precisas avançar um passo para mim - eu vou irremediavelmente ao teu encontro. Os meus braços deslaçam-se do teu corpo e tu em coma, a senti-los partir, mas sem força para os amarrares de novo à tua cintura. E eu, eu sem coragem e sem força para espantar o negrume que nos envolve e nos separa. Julgas que é eterno o meu amor por ti, não vês a efemeridade intrínseca a esta batalha que travo, inglória e sozinha, sem os teus braços à volta dos meus ombros.
Esqueces camas, meias-luzes, todos os minutos em que éramos espíritos tão livres que o simples peso dos lençóis onde nos amávamos era demasiado. Esqueces o mundo que nos viu nascer e partes para outro em que eu sou só uma miragem agradável, mas onde não caibo inteira. És um cobarde.



Palácio de Pombal, Bairro Alto 2013

25 de setembro de 2014

Peito cheio

Crescemos. Crescemos tanto em tantos anos que parece que vivemos uma eternidade. Era inevitável - meti-me a ver fotografias antigas - eu, que vocês sabem que sou o verdadeiro baú das recordações. Percebi que passamos de crianças a adultas sempre junto umas das outras, e com muitas memórias para nunca nos esquecermos. Festejamos e rimos muito, e em cada retrato da nossa história a plenitude da felicidade reluz nos nossos olhos, às vezes mais sóbrios do que outras. Temos qualquer coisa, uma essência, uma união, uma fraternidade. Somos um círculo dourado, uma aura brilhante, qualquer coisa superior e imaterial. 
Vivemos juntas muitas brincadeiras no recreio da escola, muitos arranhões e nódoas negras nas canelas. Até vivemos dentes partidos e papas de farinha. Partilhámos o sucesso do primeiro beijo, o primeiro gole de cerveja, o primeiro cigarro, as primeiras noites fora de casa, as primeiras festas, a entrada na faculdade, a vida académica ao rubro, os cafés na pressa de ir embora ao domingo e o sabor da chegada à sexta-feira para mais um fim-de-semana de loucuras. Partilhámos copos vazios na madruga, festas da aldeia até de manhã e o stress infinito de ter muita coisa para viver e pouco tempo para isso. Por outro lado também estivemos juntas em momentos de muita dor, nunca vergámos a nada que nos tentasse perturbar, juntas afastámos inimigos e curámos dores de coração. Nenhuma palavra vai ser alguma vez suficiente para descrever tudo isto.
Hoje, somos mulheres. E somos todas mulheres extraordinárias, cada uma à sua maneira, autónomas, de bom carácter. Esta é a tua vez, mas é também a nossa vez. O que aí vem também é nosso, porque também é da nossa responsabilidade fazer com que outro alguém um dia olhe para trás e se orgulhe tanto de nós como nós nos orgulhamos de nós próprias. Somos a tua muralha de aço, e estamos todas tão felizes!

Nós, 2009

1 de setembro de 2014

Sobre nada

Escrever e apagar. Não quero falar sobre ti. Começo a escrever sobre o Universo e acabo a falar sobre ti. Depois apago, debato-me com esta memória escura que me enche a memória. Talvez sejas só tu que tem permissão para ocupar os meus desabafos. Não vale a pena perguntar porquê. A doença está instalada. Já nem digo que os dados estão lançados - já foram lançados há muitos anos, calhou oito, esse número redondinho onde rebolámos infinitamente felizes. Podia ter calhado doze, ou vinte e quatro, se desse (mas não dá). Já os recolhemos, baralhámos, lançámos outra vez. Tenho a certeza que já calharam todas as combinações possíveis e, porém, ainda nenhuma subsistiu aos solavancos violentos do destino. Que quer isto dizer? Seremos nós uma probabilidade impossível, ainda não descortinada pelas teorias matemáticas de quem não tem tempo de amar? Podemos ser isso ou uma espécie de Idade da Pedra, irremediavelmente perdida de tão ultrapassada que está. Gostava de aceitar os finais, mas finais nunca me satisfazem. Preciso de psicanálise. Dizem que se pode morrer de amor. Literalmente morrer de amor. Dizem que pode ser tão insuportável e doloroso para o corpo humano que chega a ser fatal. Tenho medo de morrer, mas de amor não - não consigo encontrar uma razão mais legítima para morrer que não de amor. Esqueci-me de dizer que ainda há coisas tuas a ocupar-me espaços grandes nos armários.

«A cadeira do Ditador» - Cinema S.Jorge, 2013

23 de julho de 2014

Ironias

Decreta-se o luto no florir da Primavera. Porquê, porquê tanto esforço em prol do que não vale mais que um corpo e uma alma inteiros dados um ao outro em época de flores? E os tectos caem enquanto os olham os amantes e os gastam com amor exalado, dissipado na atmosfera quente e perversa. Lá fora cantam pássaros e florescem cores dos canteiros enquanto tudo apodrece cá dentro, entre quatro paredes amareladas pela respiração perigosa, intercalada por faltas de ar mais concretamente apelidadas de silêncios impermeáveis. Porquê se tudo morre na devassa noite que até podia ser serena, mas é terrivelmente caótica. O amor sobe e desce e prende-se às paredes do estômago, dá voltas e voltas e quando dou por nós estamos esteirados no chão frio com o peito mais rasgado que nunca. Olhamos os olhos um do outro para vermos este nada que afinal é tudo e vivemos no avesso destas emoções concretas e aterradoras que julgamos esquecidas, mas que sempre achamos quando nos baixamos os dois para apanhar qualquer coisa que se soltou do coração e se perdeu infinitamente na calçada de pedra, ou de cimento, ou na areia, ou no que for possível no momento em que cai. Somos vazios e cheios ao mesmo tempo e o destino é um paradoxo que nunca nos leva a bom porto. Quando percebemos a inutilidade desta dança frenética decidimos que o melhor é que se decrete o luto no florir da Primavera.


Cinema S.Jorge, 2013

17 de julho de 2014

A vida não nos acontece.

Dizem que a vida nos acontece. É bonito e profundo, como a Humanidade tanto gosta, mas não sei se é verdade. A vida acontece, de facto, mas não sei se nos acontece. Perdemos amores porque a vida nos acontece? Dói-nos o peito, temos saudades, o orgulho tolda-nos os sentimentos, o cérebro sobrepõe-se ao coração, vivemos no exagero das nossas emoções, porque a vida nos acontece? Em que sítio dessa vida que nos acontece é que fica o livre arbítrio, a nossa dimensão humana e consequentemente falível e errática? Em que parte dessa vida que nos vai acontecendo é que nós ficamos? A nossa vida e as nossas decisões são rios paralelos só que a vida que nos acontece é um rio maior que a vida que nós decidimos? Não compreendo.
Não acho que sejamos dois estranhos no mesmo metro quadrado porque a vida nos aconteceu. Uma das figuras que eu mais admiro cruzou a "vida que me acontece" há um ano. É um homem. Esse homem disse-me que não devemos olhar para a nossa história como uma anormalidade só porque algo correu mal - esses fragmentos duros de assumir são apenas uma conjugação de factores vários que se fixaram na nossa vida e que condicionaram o resultado apenas a um dos infinitos possíveis de acontecer. Aconteceram monstruosidades, mas não foram a vida a acontecer-no. Foram as nossas decisões que nos colocaram no caminho trapos, não necessariamente maus, mas que juntos e cosidos resultaram num vestido terrivelmente feio.
Se agora nos olhamos com desprezo, ainda com mágoa, carregadinhos de ressentimentos e não damos o braço a torcer por nada deste mundo, mesmo que o Universo ameace desfazer-se em bocados, não é porque a vida nos aconteceu. Aconteceu-nos sim que tomámos péssimas decisões ao mesmo tempo que íamos sendo humanos. E essa é a única certeza que temos do que nos vai acontecer sempre, sem controlo nem evitáveis: sermos humanos. Os erros inerentes a esta condição frágil de sermos humanos é que nos aconteceu. Lidar com essas falhas são as únicas rédeas que nos restam da vida. Ela não acontece - nós fazemo-la acontecer enquanto vamos humanizando ou animalizando por aí. Na realidade, se quisermos ser concretos e sem medo do absurdo, podemos considerar que animalizamos os nossos sentimentos um pelo outro. Felizmente, não é assim tão mau quanto parece. Animal é inato, é despersonalizado, súbito, racional. Amor é animal porque é isto tudo. Se pensarmos bem, a nossa condição humana só nos vai afastando de umas águas, enquanto paralelamente a esse rio corre o do instinto, com outras águas às quais chegaremos inevitavelmente. E é assim que tudo acaba: a vida não nos acontece, fazemo-la nós acontecer enquanto a nossa humanidade nos vai dando puxões para fora das águas límpidas onde todos estamos destinados a mergulhar. Um dia haveremos de lá chegar, deixar de ser humanos, despojarmo-nos desse capricho e amar, apenas e só, animalescamente.
Espera só, que esse orgulho não é eterno.


Graça, 2013