16 de março de 2013

Polícia

«No calor do bar a roupa fumegava. Gotas de água à volta. Calma solidão sem dor. Havia música. Meu Deus! a minha alma conhecia os seus caminhos. A terra era grande. Tudo quanto eu fizesse, cada coisa que me acontecesse, não me tornariam maior ou menor que a fé ou o desespero. Pois o desespero era antigo: uma delgada, tenacíssima raiz. Era uma experiência, um pensamento, um destino - algo que eu aceitava, que me induzia talvez a amar a vida. Estava só no meio da chuva tranquila. Podemos sempre beber uma cerveja como se fosse a última. Em cada instante a terra ainda consegue ser completa: é a única, e isso mesmo se renova.
Annmarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu - simples, tenebrosa - entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria entre nós dois ali sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.
(...) Agora uma mulher bebia cerveja na minha solidão, falava do filho que abandonara, do marido que estava na guerra. (Pronunciava as palavras devagar, arrancava-as inexoravelmente a esse sempre vivo e sempre secreto vocabulário do medo e do empenhamento. Dizia sorrindo que estava perdida. Gostava de cerveja belga, achava Bruxelas insuportável. Sim, queria morrer. Queria morrer anonimamente, no fim do deserto. Eu percebia. (...)
Annmarie tinha o dom da poesia subversiva. Subvertia tudo. A seu lado senti que a minha vida era importante. Que a arriscaria, sempre e sempre, que perderia, mas nada cedendo de mim próprio. O amor do perigo embebedava-me.
Começamos então a lutar contra a polícia do mundo inteiro. Quando anoiteceu saímos do bar e fomos a pé, vigilantes, protegidos, até ao meu quarto de Laeken. Contornámos o que nos parecia suspeito: um carro parado, um vulto vagaroso, as sombras, as vozes. (...) Mas depois o quarto foi nosso. Annmarie despiu-se e deitou-se nua sobre o cobertor enquanto eu tentava aquecer um pouco de água. Falámos longamente da chuva, do amor e das leis.
Às duas da manhã fomos à janela e vimos passar guardas na rua. Pareceu-me que observavam a nossa janela. Cumplicidade e ardor, a partilha da vulnerabilidade mútua, a coragem de tudo enfrentar com tão pouco: eram essas as nossas armas. E dispúnhamos dos melhores talentos da libertinagem. Annmarie puxou-me para dentro e amámo-nos sobre o cobertor até de manhã, até a luz fria nos afogar.
Choveu sempre. Sentíamos a chuva sobre a terra inteira. Éramos invencíveis  Seja dito que vós, os desta nação, ignorais muitas coisas. Talvez Deus vos não inspire.»

Os passos em volta, Herberto Helder

2006

2 comentários:

Ana Tapadas disse...

Já houve um temo na minha vida vida em que lia muito H. Helder.
Excelente escolha.
bj

Ana Tapadas disse...

(*tempo)

...mas espero por um texto seu!

Beijinho amigo